Storytelling Estratégico: onde negócios e histórias se encontram — Campbell, Vogler e a clássica Jornada do Herói
O primeiro episódio está aqui. Em O Herói de Mil Faces (1949), Joseph Campbell, professor de literatura no Sarah Lawrence College, desenvolve sua teoria de que todas as narrativas mitológicas compartilham a mesma estrutura básica. Ele se refere a essa estrutura como o “monomito” (ideia de acordo com a qual todos os mitos heroicos compartilham
O primeiro episódio está aqui.
Em O Herói de Mil Faces (1949), Joseph Campbell, professor de literatura no Sarah Lawrence College, desenvolve sua teoria de que todas as narrativas mitológicas compartilham a mesma estrutura básica.
Ele se refere a essa estrutura como o “monomito” (ideia de acordo com a qual todos os mitos heroicos compartilham o mesmo quadro ou estrutura) ou a Jornada do Herói. Campbell resume o conceito da seguinte maneira:
“Um herói escapa do mundo comum para uma região de maravilhas sobrenaturais. Forças extraordinárias são encontradas, e uma vitória decisiva é conquistada: o herói volta dessa misteriosa aventura com o poder de conceder bênçãos a seu semelhante”. Joseph Campbell
A Jornada do Herói é um arquétipo narrativo comum, ou modelo de história, que envolve um herói que sai para uma aventura, aprende uma lição, conquista uma vitória com esse novo conhecimento e depois volta para casa transformado.
Campbell apresenta 17 etapas totais da estrutura da Jornada do Herói. No entanto, não todos os monomitos apresentam necessariamente todas as etapas, nem na mesma ordem em que Campbell as descreveu.
Sua teoria é centrada no masculino, e é por isso que vamos falar de “herói” e não de “heroína”. Apesar de sua teoria ter tido enorme influência, é preciso reconhecer que o autor tinha uma visão muito restrita das questões de gênero, incluindo o papel da mulher.
A Jornada também contempla elementos freudianos, como o confronto com o pai.
O modelo da Jornada do Herói de Campbell
A Jornada do Herói pode ser resumida em 3 etapas essenciais:
- a partida: o herói deixa o mundo familiar para trás;
- a iniciação: o herói aprende a navegar pelo mundo não familiar;
- o retorno: o herói volta para o mundo familiar.
A seguir, vamos explorar os detalhes de cada uma dessas etapas.
A partida
Em resumo, o herói está vivendo no chamado “mundo comum” quando recebe um chamado à aventura.
Normalmente, o herói não se sente totalmente seguro para seguir esse chamado — essa fase é conhecida como a “recusa do chamado” —, mas depois é ajudado por uma figura mentora, que dá a ele conselhos e o convence a seguir em frente.
A iniciação
Na seção de iniciação, o herói entra no “mundo especial”, onde começa a enfrentar uma série de tarefas até atingir o clímax da história — o principal obstáculo ou inimigo.
Aqui, o herói coloca em prática tudo o que aprendeu em sua jornada para superar o obstáculo.
Campbell fala sobre o herói alcançar algum tipo de prêmio por seus problemas — isso pode ser um símbolo físico, um “elixir”, ou apenas a boa e velha sabedoria (ou ambos).
O retorno
Sentindo que está pronto para voltar ao seu mundo, o herói deve agora partir.
Uma vez de volta ao mundo comum, ele passa por uma metamorfose pessoal para perceber como sua aventura o mudou como pessoa.
A Jornada do Herói inclui alguns modelos psicológicos emprestados de Jung e Freud. Na verdade, Campbell pensava que o herói era capaz de ensinar algo sobre nós mesmos.
A seguir estão todos os 17 passos da Jornada do Herói, conforme delineado por Campbell.
A partida
1. O chamado à aventura: algo, ou alguém, interrompe a vida familiar do herói para apresentar um problema, uma ameaça ou uma oportunidade.
2. A recusa do chamado: sem vontade de sair de sua zona de conforto ou enfrentar seu medo, o herói inicialmente hesita em embarcar nessa jornada.
3. Ajuda sobrenatural: uma figura mentora dá ao herói as ferramentas e a inspiração de que ele precisa para aceitar o chamado à aventura.
4. A travessia do limiar: o herói embarca em sua empreitada.
5. O ventre da baleia: o herói atravessa o ponto de não retorno e encontra seu primeiro grande obstáculo.
A iniciação
6. O caminho das provas: o herói deve passar por uma série de provas ou provações para iniciar sua transformação. Muitas vezes, ele reprova em pelo menos um desses testes.
7. O encontro com a deusa: o herói encontra um ou mais aliados, que o encorajam e o ajudam a continuar sua jornada.
8. A mulher como tentação: o herói é tentado a abandonar ou desviar-se de sua busca. Tradicionalmente, essa tentação é um interesse amoroso, mas pode se manifestar também de outras formas, incluindo fama ou riqueza.
9. Expiação com o Pai: o herói enfrenta a razão de sua jornada, encarando suas dúvidas, temores e as forças que regem sua vida. Esse é um grande ponto de virada na história: cada passo anterior trouxe o herói até aqui, e cada passo em frente decorre desse momento.
10. A apoteose: como resultado desse confronto, o herói ganha uma compreensão profunda sobre o seu propósito ou habilidade. Armado com esse entendimento, ele se prepara para a parte mais difícil da aventura.
11. A última dádiva: o herói alcança o objetivo que vinha buscando, cumprindo o chamado que inspirou sua jornada em primeiro lugar.
O retorno:
12. A recusa do retorno: se a jornada do herói foi vitoriosa, ele pode ficar relutante em retornar ao mundo comum de sua vida anterior.
13. O voo mágico: o herói deve fugir com o objeto de sua busca, despistando daqueles que estão tentando roubá-lo.
14. Resgate interior: assim como no encontro com a deusa, o herói recebe ajuda de um guia ou salvador para chegar a casa.
15. A travessia do limiar de retorno: o herói faz um retorno bem-sucedido ao mundo comum.
16. Mestre de dois mundos: vemos o herói alcançar um equilíbrio entre quem ele era antes de sua viagem e quem ele é agora. Muitas vezes, isso significa equilibrar o mundo material com a iluminação espiritual que ele conquistou.
17. Liberdade para viver: deixamos o herói em paz para seguir com sua vida.
O modelo da Jornada do Herói de Vogler
Christopher Vogler, produtor e escritor de filmes de Hollywood, foi influenciado pela Viagem do Herói de Joseph Campbell. O Herói de Mil Faces influenciou os escritores no campo da literatura, da música, dos filmes e dos videogames.
Talvez o exemplo mais famoso seja o caso de George Lucas, que deu os créditos a Campbell por influenciar a estrutura dos filmes da saga Guerra nas Estrelas.
No final dos anos 90, Christopher Vogler criou um memorando de sete páginas intitulado Um Guia Prático para o Herói de Mil Faces, com o objetivo de ajudar os escritores de Hollywood a entenderem a estrutura do monomito de Campbell.
O memorando foi posteriormente transformado em um livro sobre a escrita de roteiros, A Jornada do Escritor: Estrutura Mítica para Escritores (1992).
Os 12 estágios do herói são:
1. O herói é introduzido em seu mundo comum
A maioria das histórias se passa em um mundo especial, um mundo que é novo e estranho para o seu herói.
No filme A Testemunha, por exemplo, você vê tanto o menino Amish quanto o policial em seus mundos comuns antes de serem empurrados para mundos completamente estranhos — o garoto fazendeiro para a cidade e o policial da cidade para o campo desconhecido.
Em Guerra nas Estrelas, você vê Luke Skywalker bastante entediado trabalhando no campo antes de explorar o Universo.
2. O chamado à aventura
O herói é apresentado a um problema, um desafio ou uma aventura. Usando o exemplo de Guerra nas Estrelas novamente, a mensagem holográfica da princesa Leia para Obi-Wan Kenobi pede a Luke que se junte à busca.
Nas histórias de detetives, é o herói que aceita um novo caso. Em comédias românticas, esse momento pode consistir na primeira visão daquela pessoa especial — mas irritante — que o herói ou heroína vai buscar ou combater durante o restante da história.
3. O herói se mostra relutante no início
Muitas vezes, nesse ponto, o herói fica no limiar da aventura. Afinal, ele ou ela enfrenta o maior de todos os medos: o medo do desconhecido.
Nesse ponto, Luke recusa o chamado de Obi-Wan para a aventura e retorna à fazenda de seus tios e tias, apenas para encontrar os stormtroopers comandados pelo Imperador que os mataram.
De repente, Luke deixa de ficar relutante e passa a ficar ansioso para começar a aventura. Ele se sente motivado.
4. O herói é encorajado por uma velha ou velho sábio
Nesse momento, muitas histórias terão introduzido um personagem parecido com o Merlin, que é o mentor do herói.
No filme Tubarão, quem cumpre esse papel é o ríspido personagem de Robert Shaw que sabe tudo sobre os tubarões. O mentor dá conselhos e, às vezes, armas mágicas. Em Guerra nas Estrelas, é Obi-Wan Kenobi dando a Luke Skywalker o sabre de luz de seu pai.
No entanto, o mentor só pode ir até certo ponto com o herói. No fim, o herói deve enfrentar o desconhecido por si mesmo. Às vezes, porém, o velho sábio é obrigado a dar um empurrãozinho nele para que a aventura comece.
5. O herói passa o primeiro limiar
O herói entra plenamente no mundo especial de sua história pela primeira vez. Esse é o momento em que a história decola e a aventura começa. O herói está agora comprometido com sua jornada, e não há como voltar.
6. O herói encontra aliados, testes e ajudantes
O herói é forçado a fazer aliados e inimigos no mundo especial, além de passar por certos testes e desafios que fazem parte de seu treinamento.
Em Guerra nas Estrelas, a cantina em Mos Eisley é o cenário para a formação de uma importante aliança com Han Solo e o início de uma inimizade com Jabba The Hut.
Em muitos filmes de faroeste, é no saloon que essas relações são estabelecidas. No filme Guerra nas Estrelas, a fase de testes e desafios é representada pela cena de Obi-Wan ensinando a Luke sobre a Força enquanto o instrui a lutar com os olhos vendados.
As primeiras batalhas a laser com os Caças Imperiais são outro teste pelo qual Luke passa com sucesso.
7. O herói chega na caverna mais profunda
O herói chega finalmente a um lugar perigoso, muitas vezes bem fundo no subsolo, onde o objeto de sua busca está escondido. Nas histórias arturianas, a Capela Perigosa é a câmara assustadora onde o explorador encontra o Graal.
Em muitos mitos, o herói tem que descer ao inferno para recuperar um ente querido ou a uma caverna para lutar contra um dragão e ganhar um tesouro. Em Guerra nas Estrelas, essa etapa consiste em Luke e seus companheiros sendo sugados para a Estrela da Morte, onde resgatarão a Princesa Leia.
Às vezes, é o herói que entra na sede de seu nêmesis e, em outras ocasiões, é apenas o herói que entra em seu próprio mundo dos sonhos para enfrentar seus piores medos e vencê-los.
Esse é o momento em que o herói chega ao fundo do poço. Ele enfrenta a possibilidade da morte, sendo levado a um extremo durante uma luta com uma besta mítica.
8. O herói suporta a provação suprema
Para o público que está fora da caverna esperando o vitorioso emergir, esse é um momento de expectativa. Em Guerra nas Estrelas, é o momento angustiante nas entranhas da Estrela da Morte, onde Luke, Leia e companhia estão presos no gigantesco triturador de lixo.
Luke é puxado para baixo pelo monstro de tentáculos que vive no esgoto e é segurado por tanto tempo que o público começa a se perguntar se ele está morto.
Esse é um momento crítico em qualquer história, uma provação em que o herói parece morrer e nascer de novo. Essa é uma grande fonte da magia do mito do herói.
O que acontece é que, nesse ponto, o público já foi levado a se identificar com o herói. Somos encorajados a experimentar com ele o sentimento de brincar com a morte.
Assim, nos sentimos temporariamente deprimidos, e depois somos reanimados quando o herói retorna da morte.
9. O herói recupera e agarra a espada
Tendo sobrevivido à morte, espancado o dragão, o herói agora toma posse do tesouro que veio buscar. Às vezes, é uma arma especial, como uma espada mágica, ou pode ser um símbolo como o Graal ou algum elixir que cura a terra ferida.
Outras vezes, a “espada” é o conhecimento e a experiência que levam a uma maior compreensão e a uma reconciliação com as forças hostis.
O herói pode, por exemplo, resolver um conflito com seu pai ou com seu nêmesis sombrio. Em O Retorno de Jedi, Luke se reconcilia com ambos, pois descobre que o moribundo Darth Vader é seu pai.
O herói também pode se reconciliar com uma mulher. Muitas vezes, ela é o tesouro que ele veio conquistar ou resgatar, e com frequência há uma cena de amor ou casamento sagrado nesse ponto.
A provação suprema do herói pode conceder a ele uma melhor compreensão das mulheres, levando a uma reconciliação com o sexo oposto.
10. O caminho de volta
O herói ainda não está fora de perigo. Algumas das melhores cenas de perseguição vêm nesse ponto, pois o herói é perseguido pelas forças vingativas de quem roubou o elixir ou o tesouro.
Essa é a perseguição que ocorre enquanto Luke e amigos escapam da Estrela da Morte, com a Princesa Leia e os planos que derrubarão Darth Vader.
Se o herói ainda não conseguiu se reconciliar com seu pai ou com os deuses, eles podem vir em fúria atrás dele nesse momento.
11. Ressurreição
O herói emerge do mundo especial, transformado por sua experiência. Muitas vezes, há aqui uma repetição da falsa morte e do renascimento da etapa 8, já que o herói mais uma vez enfrenta a morte e sobrevive.
No caso de Luke Skywalker, cada provação garante a ele um novo comando sobre a Força. Ele é transformado em um novo ser por sua experiência.
12. Retorno com o elixir
O herói volta ao seu mundo comum, mas sua aventura não teria sentido se ele não trouxesse de volta o elixir, o tesouro ou alguma lição do mundo especial.
Às vezes, esse tesouro é apenas conhecimento ou experiência, mas a menos que ele volte com o elixir ou alguma bênção para a humanidade, ele está condenado a repetir a aventura até que o faça.
Outras vezes, o benefício é um tesouro encontrado na busca, o amor ou apenas o conhecimento de que o mundo especial existe e de que é possível sobreviver a ele.
Em outros casos, ainda, a recompensa é apenas voltar para casa com uma boa história para contar.
Muitos autores já usaram o monomito na literatura e na ficção popular. A seguir, veja dois exemplos.
Matrix (1999)
O mundo comum: Thomas Anderson é um programador de computador entediado durante o dia e o hacker Neo durante a noite.
O chamado à aventura: Neo recebe uma mensagem que garante a ele que nem tudo é o que parece. É dito para “seguir o coelho branco”.
Recusa do chamado: Neo não tem certeza se o Trinity está dizendo a verdade. Ele se permite ser capturado.
O mentor: Morfeu dá a Neo uma escolha — ele deve tomar a pílula azul se quiser voltar à sua vida antiga ou a pílula vermelha se quiser saber a verdade.
Atravessando o limiar: Neo escolhe a pílula vermelha e é mostrado a ele o que é a Matrix.
A provação: Neo luta para aceitar seu novo papel, mas acaba aprendendo a se tornar quem estava destinado a ser, derrotando o agente Smith dentro da Matrix e salvando Morfeu.
O retorno: Neo diz às máquinas que as derrotará e salvará a humanidade.
J.R.R. Tolkien, O Senhor dos Anéis: A Irmandade do Anel (1954)
O mundo comum: Frodo vive no Condado, desfrutando de uma vida agradável e tranquila com seus amigos.
O chamado à aventura: após sua descoberta sobre o anel do poder, Gandalf pede a Frodo para empreender uma viagem e manter o anel com ele.
Recusa do chamado: Frodo não tem certeza se deve deixar o Condado, pois não tem experiência com o mundo lá fora.
O mentor: Gandalf convence Frodo de que ele tem um coração puro, e é ele quem deve “suportar esse fardo”.
Atravessando o limiar: Frodo e Sam deixam o Condado para trás, o que deixa Frodo com sentimentos mistos.
A provação: essa etapa é caracterizada pelos muitos desafios que Frodo enfrenta no caminho com a Irmandade, incluindo a luta com o Balrog.
O retorno: Frodo percebe que não pode mais fazer parte da Irmandade e deve continuar a viagem sozinho. Ele parte para a Montanha da Perdição.
Fim do Episódio 2.
Próximo Episódio — Storytelling estratégico: onde os negócios e as histórias se encontram
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